domingo, 1 de julho de 2007

Remedios, a bela.

Aviso: é um texto longo. Se não quiser ler, não vou me importar. Não vai fazer diferença mesmo... =)

A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irrebatíveis. Ainda que alguns homens de palavra fácil gostassem de dizer que bem valia sacrificar a vida por uma noite de amor com uma mulher tão perturbadora, a verdade foi que nenhum fez qualquer esforço para o conseguir. Talvez, não só para a render como também para esconjurar os seus perigos, tivesse bastado um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas essa foi a única coisa de que ninguém se lembrou.

Úrsula não voltou a preocupar-se com ela. Noutra época, quando ainda não tinha renunciado ao propósito de a salvar do mundo, tentou que se interessasse pelos assuntos elementares da casa. "Os homens pedem mais do que tu julgas", dizia-lhe enigmaticamente. "É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por ninharias, muito mais do que tu julgas." No fundo, enganava-se a si própria, tentando prepará-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida que uma vez satisfeita a paixão, não havia homem na Terra capaz de suportar nem que fosse por um dia uma negligência que estava para além de toda a compreensão. O nascimento do último José Arcadio e a sua firme vontade de o educar para papa, acabaram por fazê-la desistir das preocupações com a bisneta. Abandonando-a à sua sorte, confiando que, mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que, neste mundo, onde havia de tudo, também haveria um homem com pachorra suficiente para se encarregar dela.

Há já muitos meses que Amaranta desistira de todas as tentativas para a tornar numa mulher útil. Desde as tardes esquecidas da sala de costura, quando a sobrinha apenas se interessava por dar à manivela da máquina de costura, que chegara à conclusão simples de que era tonta. "Vamos ter de te rifar", dizia-lhe, perplexa, perante a sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou em que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso se tornaria tão provocador que depressa haveria um homem suficientemente intrigado para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata como desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível do que um príncipe, renunciou a toda a esperança.

Fernanda não fez sequer uma tentativa para a compreender. Quando viu Remedios, a bela, vestida de rainha no Carnaval sangrento, pensou que era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu a comer com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de simplicidade, a única coisa que lamentou foi que os tontos da família tivessem uma vida tão longa.

Apesar de o coronel Aureliano Buendía continuar a acreditar e a repetir que Remedios, a bela, era, de fato, o ser mais lúcido que jamais conhecera e que o demonstrava a todo o momento com a sua assombrosa habilidade para fazer pouco de toda a gente, abandonaram-na ao deus-dará. Remedios, a bela, ficou a vaguear pelo deserto da solidão, sem cruzes às costas, amadurecendo nos seus sonhos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem recordações, até uma tarde de Março em que Fernanda quis dobrar no jardim os seus lençóis de barbante e pediu a ajuda das mulheres da casa. Mal tinham começado quando Amaranta reparou que Remedios, a bela, estava transparente, com uma palidez intensa.

- Você está a sentir-se mal? - perguntou-lhe.
Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade.
- Pelo contrário - disse -, nunca me senti tão bem.
Acabava de dizer isto quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar ao lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e com ela se perderam para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar.

(Cem Anos de Solidão - Gabo)

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